Rua Fresca
Não fica em São Brás. Mas em qualquer lugar existirá uma.
Há dias, com o intuito de dar a conhecer a quem não é de cá, a Lisboa que eu tão bem conheço, ou conhecia, fui, acompanhado, percorrer as ruas que, anteriormente, há muitos anos, me levavam ao local do meu primeiro emprego, a rua Fresca.
Com os meus dezasseis anos, da Damaia chegava à estação do Rossio, de comboio, este quase sempre cheio, portanto, vinha no meu lugar habitual, meu e de muitos, nos degraus das portas, que davam acesso às carruagens, portanto, literalmente, do lado de fora do comboio.
Saía cá de cima, na estação, direito à calçada do Carmo, passava em frente ao quartel, metia ali por uma rua e outra, passava por detrás do Hotel Borges e, rapidamente, estava a passar entre as duas igrejas, antes do largo do Camões, rumo à calçada do Combro.
Um ano antes ou dois, os meus pais, à semelhança do que já vinham fazendo com a minha irmã, como achavam e, bem, que quase três meses de férias de Verão, da escola, era demasiado, propunham-nos, que é uma maneira leve de dizer obrigavam-nos, a ir trabalhar na empresa onde trabalhava o nosso pai, os Armazéns Conde Barão, durante aí uns dois meses desses três de férias. Eu ia para a loja de móveis e alcatifas, que ficava, na já citada rua, a rua Fresca. Estava debaixo de olho do meu pai. A loja ficava por baixo da fábrica de confeções, onde ele era o alfaiate e encarregado. No edifício, ao lado da fábrica ficavam também os escritórios.
No segundo ano, destes trabalhos forçados, nas férias, durante a altura em que eu estava pela loja, num desses dois meses, a esforçar-me para vender alguma coisa, mas a ser mais útil, apesar da minha fraca figura, dos meus 55 quilos, mesmo assim, como ajudante, na distribuição, ou como ajudante do carpinteiro ou dos alcatifadores, surgiu uma vaga no escritório, para paquete, estafeta, moço de recados, enfim como queiram chamar. O convite do chefe de escritório foi-me feito, um convite que hoje desconfio, ou tenho quase a certeza, de que deve ter tido o dedinho, ou cunha, do meu pai, mas que eu, de imediato, aceitei sem pestanejar.
Trabalhei cinco anos ali. De estafeta, da rua, passei, um ano depois, lá para dentro, do escritório, para caixa na tesouraria. Contava todas as notinhas e moedas, diariamente, vindas das diversas lojas que a empresa tinha. Depois levava tudo, numa malita, a pé, ou de transporte público, para um banco, ou para algum ali perto, ou para outro mais afastado, era onde elas, as notinhas, estavam a fazer mais falta, nas contas da empresa. Feita esta tarefa diária, o regresso ao escritório, de mala vazia, mais descontraído, era demorado, muito demorado, muita rua, por ali e, não só, percorridas a passo de caracol.
Assim, há dias, o início do passeio, não foi a estação do Rossio, mas a estação de METRO no Chiado mas, meia dúzia de passos dados, estávamos, ali, entre as duas igrejas e, no percurso original. Largo do Camões, calçada do Combro, um pequeno desvio ao miradouro de Santa Catarina, novamente, calçado do combro e, pouco depois, na rua Fresca.
Andamos por ali, pela rua poço dos negros, rua dos mastros, direitos ao largo, Conde Barão. A Loja, a principal, ao abandono. Rua da Boavista, São Paulo, uma olhadela à Ribeira, rua do arsenal e, na praça do Comércio, Metro, rumo aos subúrbios novamente.
Há alguns anos já tinha voltado à rua Fresca. Ia à procura de sardinhas assadas, ao Silva, tantas que ali tinha comido, mas apenas comi, desolado, eu e um colega meu, desviado, por mim, nessa altura, para esse meu regresso ao passado, umas batatas fritas e umas costeletas de porco, descongeladas à pressa e fritas, este, um prato feito apenas para nós, os únicos clientes, excepto, os velhos do dominó, os mesmos, se calhar, dos meus 16 anos.
Contudo, desta vez sim, ao chegar ao topo da rua Fresca, com os meus 52 anos e, de repente, vi, imaginei, a azáfama desses tempos, dessa empresa, as costureiras, nas suas batas azuis, a saírem ou a entrarem, na hora do almoço, ou nos intervalos da manhã ou da tarde, da fábrica, o meu pai, eu, com 16 anos, os meus colegas do escritório, todos por ali, ou a tasca do Silva cheia, agora sim, percebi, já passaram muitos muitos anos desde esses tempos.